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domingo, 12 de setembro de 2010

Crônica de domingo: A sogra do Jacamim em busca da beleza

 A sogra do Jacamim em busca da beleza

A mídia, lamentavelmente, não deu a devida importância a um evento que discutiu, entre outros temas, a Amazônia. De qualquer forma, lá compareceu a sogra do Jacamim, que saiu em busca das cores da beleza e acabou encontrando essa outra forma do belo que é o conhecimento.

Por José Ribamar Bessa Freire (*)



O Jacamim andava ciscando no terreiro e, com seu bico irrequieto, beliscava um inseto aqui, uma minhoca ali, uma sementinha acolá. Sua sogra, que assistia a cena, viu que tudo nele era desproporcional e deselegante. Pescoço pelado, curvo e compriiiiido. Cabecinha minúscula em cujo cocuruto emergia ridículo topete de penas eriçadas. Curtas, demasiado curtas eram suas asas. Altas, excessivamente altas suas pernas. Ela olhou aquele bicho desengonçado e, com a sinceridade que as sogras soem ter, disse:
- Meu genro, não me leve a mal não, mas você é feio! Muito, mas muiiiiiiito feio! Feio pra chuchu! Parece até que minha filha casou com um urubu!
Ele, o jacamim-una de penas pretas, decidiu conferir no espelho do lago. A imagem refletida era, efetivamente, a de um urubu corcunda, pernalta, sem garras e com cabeça de piroca. Não gostou. De tristeza, cantou. Mas de sua garganta saía apenas um som estridente – vuh, vuh, vuh – que vibrava como o toque irritante e uniforme de uma corneta. A sogra que tudo observava, arrematou:
- Tudo em você está errado. Nem cantar você sabe. Seu canto parece latido de cachorro ou berro barulhento de uma vuvuzela. Ah, mas isso não vai ficar assim não. Vamos mudar. Espere aqui, meu genro, vou lá no mato procurar a beleza pra você.
Foi.
A beleza das cores
- Beleeeeza, cadê você? – perguntou a sogra, entrando na floresta com um saco. Foi colocando dentro dele tudo de belo que encontrava: as tintas do beija-flor e suas penas com as sete cores iridescentes do arco-íris; o peito, o abdome e o papo-vermelho da pipira; o bico duro e cônico do azulão e sua mandíbula angulosa. Depois, pegou o olhar aceso do rouxinol e a meiguice do pintassilgo. Guardou a sociabilidade, a alegria e o espírito de camaradagem do bem-te-vi, a mansidão do canário-da-horta, a valentia do gavião e até o aparelho digestivo do murucututu lá em cima do telhado.
Mas a velha queria mais. Continuou enchendo o saco. Capturou o voo elegante e baixo de uma andorinha que, sozinha, não fazia verão, mas riscava o ar em curvas caprichosas. Esperou o tico-tico-rei arrufar suas penas brilhantes – tico-tico lá, tico-tico cá - para roubar-lhe o topete vermelho escarlate que parecia incendiar sua cabeça como uma chama. Na terra com palmeiras onde canta o sabiá, ela se apoderou da cauda empinada e das patas cor de avelã da ave que gorjeava e saltitava com desembaraço,
O saco, já quase cheio, recebeu ainda plumas de seda do sanhaço, penas aveludadas do guará recolhidas em um manguezal e vozes de todos os pássaros que o japiim imitava, coletadas num ninho construído ao lado de uma casa de caba. Finalmente, a velha pegou a garganta do uirapuru, com o repertório de seu canto mágico. E quando já ia embora, ensacou os hábitos de higiene do vira-bosta, que toma sempre seu banho matinal – faça frio, faça calor – depois de revolver o esterco à procura de milho.
- Beleeeeeeza, cadê você – perguntou outra vez a velha. Lá de dentro do saco mil vozes de pássaros trinaram. Satisfeita, ela retornou e entregou ao genro toda a beleza ornitológica da mata:
- Aqui está, meu genro, pra você se lavar, se pintar, se enfeitar, se colorir e afinar sua voz.
- Vou me lavar já – ele disse, agradecido.
Foi.
Mas enquanto tomava banho no igarapé, os outros pássaros furtaram-lhe as tintas, as cores, as plumas, os enfeites, o canto e até mesmo sua própria roupagem. A sogra, vendo o genro nuzinho, perguntou:
- Ô Coisa Feia, onde está a beleza que te dei?
- Eles roubaram.
- Além de feio, és leso e abestado – disse a sogra, esfregando sumo de jenipapo na costa dele, que ficou negra. Depois, passou uma mistura de casca de abacaxi com urucu no peito, que ficou roxo. É por isso que o jacamim-una ficou assim.
Os saberes 
Essa história que circula entre os índios do rio Negro (AM) é uma versão livre que eu recriei inspirado na narrativa ‘O jacamin e as cores’ (Yacamy i pinima çaua irumo), recolhida no Rio Branco pelo cientista João Barbosa Rodrigues, um ex-professor do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, que viveu mais de dez anos no Amazonas (1872-1874 e 1883-1890). Ele organizou e dirigiu o Museu Botânico de Manaus, andou pelos rios da região, conviveu com diferentes etnias e aprendeu o Nheengatu - a língua geral que lhe permitiu ouvir as histórias e registrar a ciência indígena.
Contei essa e outras histórias na quarta-feira, 8 de setembro, no Auditório Solimões do campus da Universidade Federal do Amazonas, em Manaus, numa mesa-redonda compartilhada com o historiador Antônio Loureiro, que se autodefiniu com simpatia e humor como um ING – indivíduo não governamental. A mesa fazia parte da programação do I Simpósio João Barbosa Rodrigues, coordenado por Antonio Webber e promovido por Frederico Arruda, Pro-Reitor de Extensão e Interiorização da UFAM.
A homenagem da UFAM a Barbosa Rodrigues é mais do que merecida. Ele é o autor do livro Poranduba Amazonense, uma edição bilíngue da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro de 1890, que reúne mitos, contos zoológicos, contos astronômicos e contos botânicos, além de “cantigas com que as mães embalavam seus filhos ou animavam as danças e os trabalhos”, num total de 130 textos.
A grande sacação de Barbosa Rodrigues foi perceber, no século XIX, que numa sociedade sem biblioteca, sem livros, sem escrita, mas com forte tradição oral, as histórias e cantos funcionam como enciclopédias onde estão contidos os saberes necessários para a sobrevivência e a reprodução das culturas. São aulas de botânica, zoologia, astronomia, ciências sociais e ciências humanas, com seus supremos mistérios.
A história aqui apresentada, em suas diferentes versões, constitui um mini-tratado de ornitologia, que dialoga com o Catálogo das Aves da Amazônia, organizado posteriormente pela ornitóloga alemã Emília Snethlage (1868-1929), ex-diretora do Museu Goeldi, no Pará. Essas histórias contêm o sistema de classificação das diferentes espécies de aves, pássaros e outros animais, suas características físicas e comportamentais, hábitos, costumes, lugares onde vivem, como se alimentam e se reproduzem.
Parte desse conhecimento, que foi satanizado e discriminado por não se enquadrar dentro dos cânones da ciência e da religião dominantes, se perderia com a morte dos velhos narradores se alguns tupinólogos não os tivessem registrado. Barbosa Rodrigues, que publicou inúmeras obras de botânica, uma delas sobre palmeiras, outra sobre orquídeas, ficou encantado com a capacidade de observação e o espírito científico dos índios.
Segundo ele, os índios “seguiam e seguem um método sintético na classificação das plantas. Designam as espécies por nomes tirados dos caracteres das folhas, flores, frutos ou de propriedades como o cheiro, o sabor, a dureza, a duração, a cor, o emprego, etc.etc. Nenhuma característica essencial lhes escapa. São tão exatas as suas observações, que se encontram gêneros e subgêneros em uma só família, como se fossem agrupados por um verdadeiro botanista”.
O I Simpósio Barbosa Rodrigues fez parte de uma programação maior do 61º Congresso Nacional de Botânica, organizado pela Sociedade Brasileira de Botânica e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, com o apoio da UFAM e de outras instituições. O Congresso reuniu em Manaus, de 6 a 10 de setembro, mais de dois mil pesquisadores do Brasil e do exterior. A mídia, lamentavelmente, não deu a devida importância a um evento que discutiu, entre outros temas, a Amazônia. De qualquer forma, lá compareceu a sogra do Jacamim, que saiu em busca das cores da beleza e acabou encontrando essa outra forma do belo que é o conhecimento.
P.S. – Alguns leitores estão reclamando porque as eleições de outubro no Amazonas não estão sendo comentadas aqui nesse espaço. Sinceramente, entre Omar Aziz e o Cabo Pereira, eu fico com a sogra do Jacamim.

*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui pra ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

Um comentário:

Sulamita Esteliam disse...

Que beleza de texto! Conhecimento e poesia de uma só tacada.

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