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domingo, 5 de setembro de 2010

Crônica de domingo: O capeta apareceu em Dourados

O capeta apareceu em Dourados

O segundo depoimento do padre Parras faria delirar a procuradora Vera Gomes, que em maio desse ano espancou uma criança por ela adotada, num episódio de repercussão nacional: “(Os índios) internalizaram tão profundamente a idéia de que o castigo é um sinal de amor, que de vez em quando um índio vem se queixar ao padre porque não era castigado, o que era sinal de que não era amado e, então, o padre mandava dar-lhe 25 chicotadas, aplicadas sempre publicamente, no meio da praça”.

Por José Ribamar Bessa Freire (*)



Aqui em Dourados (MS) não se fala de outra coisa. “O Capeta tomou conta da cidade” – confidencia em tom alarmista a vendedora da Sapataria Bianca, onde entrei para comprar uma sandália. Ela é da Igreja Universal e jura que o Capiroto – isso mesmo, ele, Lúcifer – entrou no corpo do prefeito e de mais 29 pessoas, incluindo a primeira dama, o vice-prefeito, o presidente da Câmara, nove vereadores, alguns secretários e outros políticos, todos eles presos quarta-feira pela Polícia Federal, acusados de corrupção e formação de quadrilha. Na medida em que habita aqueles corpos aprisionados, o diabo também entrou em cana. 
- “Vade retro, Satanás! Eu, einh! Vou agorinha para uma sessão de desencapetamento” – disse ao me despedir da vendedora. Era, em parte, verdade. De sandália nova, fui encontrar minha amiga, a lingüista Ruth Monserrat, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), onde se realizava o Simpósio sobre Línguas Indígenas dentro da programação das XIII Jornadas Internacionais sobre as Missões Jesuíticas e onde havia – vocês vão ver – um cheirinho de enxofre no ar. 
Esse evento reúne periodicamente, desde 1982, pesquisadores da América, Europa e Ásia, cada vez em um país diferente. Agora aconteceu no Brasil com a realização de seis mesas redondas, dez simpósios temáticos, conferências, recital de poesia, espetáculo teatral, exibição de filmes, exposição de fotos, lançamento de livros, concerto de orquestras de violões de uma aldeia indígena e outras atividades culturais. Enfim, um senhor evento, que só não teve maior repercussão na mídia, porque a quadrilha de Dourados ocupou os espaços dos jornais. 
Durante uma semana, historiadores, antropólogos, lingüistas, arqueólogos, cientistas sociais, museólogos, arquitetos, teólogos e especialistas de quinze países discutiram “o papel ambivalente e contraditório da missão”, como destacou a antropóloga Graciela Chamorro, professora da UFGD que organizou o encontro. Os pesquisadores indígenas apresentaram seus trabalhos, em suas respectivas línguas com tradução simultânea. 
DNA da Cultura

Quem apareceu com o nome de José Lúcifer no simpósio sobre línguas indígenas foi o Capiroto, isso eu vi, mas o que não sei é se ele deu também o ar de sua graça nos outros que abordaram temas diferentes: poder colonial, trabalho dos índios, práticas missionárias, educação jesuítica, catequese, memória e patrimônio, gestão de museus e sítios arqueológicos, territorialidade, fronteiras e conflitos por terras. 
A presença do Tinhoso precisa ser contextualizada. Ele baixou numa sessão na qual a língua foi apresentada como uma espécie de DNA da cultura e da história, na medida em que registra, como um sismógrafo, todas as transformações sociais. “As palavras vivas conservam as marcas de sua transformação” – explicou Bartomeu Meliá, um dos maiores conhecedores da língua Guarani, para quem a história de um povo pode ser encontrada nas palavras mais significativas ou nas grandes mudanças sofridas por elas através dos tempos.
Convencidos disso, os pesquisadores começaram a buscar nos arquivos documentos em línguas indígenas, quase sempre de origem missionária: dicionários, gramáticas, orações, catecismos e outros textos pastorais. Só na Língua Geral Amazônica já foram localizados rios de palavras em oito dicionários do século XVIII que podem ajudar a entender a história da região – diz Cândida Barros, do Museu Goeldi do Pará, uma das organizadoras do simpósio. 
Os resultados desses trabalhos apresentados na XIII Jornadas Internacionais permitem compreender melhor a vida cotidiana, a economia, a religião, a política, o sistema de parentesco, o poder e a autoridade, a alimentação, as concepções de doenças e as práticas de cura, as vestimentas, as pinturas e os adornos corporais dos povos que falavam – alguns continuam falando - essas línguas.
Um exemplo interessante foi apresentado por lingüistas da Universidade de Kiel, na Alemanha, que criaram o Projeto Kuatia Ymaguare (Peky) para estudar o guarani. “A busca sistemática de documentos tratando da vida diária nas reduções jesuíticas, mas também dos índios que estavam fora do controle missionário, nos proporcionou uma colheita inesperadamente rica de textos” – informou o lingüista Harald Thun.
A Universidade de Kiel vai editar esses manuscritos, que contém cartas escritas por índios, manuais de medicina e tratados sobre a organização das missões e sua relação com o mundo externo, tudo em língua guarani. Um deles, estudado pela lingüista Angélica Otazu é o Manuscrito Villodas, um dos poucos em que os jesuítas reconhecem o valor da cultura indígena, revelando que aprenderam com os guaranis algumas práticas médicas e, sobretudo, as formas de diagnosticar doenças, o tipo e a duração do tratamento, bem como uma classificação das plantas medicinais. A obra contém 205 receitas e vai ser editada num livro bilíngüe.
Pedro Moreno

Outro documento é o Manuscrito Gülich, uma enciclopédia da vida diária nas Reduções, que descreve a construção de casas e igrejas, a agricultura e a criação de gado, a produção de conservas e até a cozinha, assim como os conflitos internos causados pelo sistema jurídico especial, pelo paternalismo dos religiosos e pelos castigos corporais infligidos aos índios. 
Harald Thun contrapôs os dados desse documento às informações proporcionadas por dois jesuítas do século XVIII, um deles o padre Antônio Sepp que justifica assim a ‘paudagogia’ dos missionários: 
- “É preciso instigar os índios com palavras e até com o chicote; um índio chicoteia o outro por ordem do missionário, como faz o professor com o aluno, de tal sorte que a pessoa castigada jamais se queixa nem dá o menor sinal de impaciência; ao contrário, depois de receberem os açoites, procuram o padre, beijam a sua mão e dizem: ‘Senhor Padre, aguyó beté yebis, que quer dizer: agradeço mil vezes as chicotadas que me corrigiram e me fizeram aprender a ter juízo”. 
O segundo depoimento do padre Parras faria delirar a procuradora Vera Gomes, que em maio desse ano espancou uma criança por ela adotada, num episódio de repercussão nacional: “(Os índios) internalizaram tão profundamente a idéia de que o castigo é um sinal de amor, que de vez em quando um índio vem se queixar ao padre porque não era castigado, o que era sinal de que não era amado e, então, o padre mandava dar-lhe 25 chicotadas, aplicadas sempre publicamente, no meio da praça”.
Os textos trabalhados por Harald Thun relativizam esse “amor pelo chicote”, embora permaneçam ainda hoje vestígios de seu uso em algumas comunidades indígenas. Entre os Chiquitanos, um povo que habita as terras baixas da Bolivia, o chicote – essa invenção diabólica – tem até nome de gente. Ele é conhecido como Professor Pedro Moreno, que “saca lo malo y pone lo bueno”. 
Mas a presença do Capiroto se revelou mesmo foi na documentação apresentada por uma lingüista austríaca, Sieglinde Falkinger, pesquisadora da língua chiquitana, que se tornou a língua de catequese de dez povos que viviam nas reduções jesuíticas. Foi nessa língua que no século XVIII foram escritos os sermões, que ainda hoje são apresentados pelos índios nas portas das igrejas durante as 50 festas religiosas que se celebram ao longo do ano. 
O projeto de Recopilação e Documentação dos Sermões Chiquitanos iniciado em dezembro de 2008 está encontrando nas comunidades indígenas uma grande quantidade de textos escritos pelos próprios índios, que estão sendo agora organizados, tratados e transcritos. É num deles que aparece o diabo com o nome de José Lúcifer, fazendo suas estripulias. Um dia eu ainda conto as histórias que Sieglinde Falkinger e a chiquitana Silvia nos contaram.

*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui pra ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

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