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domingo, 19 de dezembro de 2010

Um Natal com bolo e bola



Quando o pé crescia, a gente ia dobrando os dedos até que não dava mais e um irmão menor herdava o sapato. Já minha meia, de vida mais efêmera, só tinha praticamente o cano, era fácil exibir os furos. Terminei a operação em alguns segundos, enquanto o ‘Bolo’ ainda procurava exibir o buraquinho da sua meia.

Por José Ribamar Bessa Freire (*)


Abril de 1945. O mundo, esfacelado, estava em guerra: a 2ª Guerra Mundial. Os navios que transportavam trigo para o Amazonas haviam cancelado suas viagens. Fazia três meses que os amazonenses não comiam pão. Só tapioca, broa e beiju. Naquele dia azarado - sexta-feira treze - chovia forte em Manaus. 

Silvio Cordeiro, 30 anos, saiu de casa cedinho pra comprar as broas da Marina, mas molhou-se todo porque a haste do seu guarda-chuva estava com o arame empenado. Buscou, então, abrigo na taberna do Jaime da dona Quinu na Praça da Bandeira Branca. Lá, enquanto esperava a chuva passar, leu a manchete do Jornal do Comércio, que berrava em letras garrafais: 

- MORREU ONTEM, VÍTIMA DE UM DERRAME CEREBRAL, O PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS FRANKLIN DELANO ROOSEVELT. 

“Ele não morreu. Continuará vivo no meu primeiro filho” protestou Silvio, com os lábios trêmulos. Cumpriu a promessa. Batizou seu primogênito com o nome de Franklin Delano Roosevelt Cordeiro, apelidado de ‘Bolo’ nas ruas de Aparecida. A família dá o nome, mas quem apelida é a rua. O apelido seria ‘Cake’, se o bairro só falasse inglês que nem o cavalo do Chico Buarque. No embalo, o segundo filho recebeu o nome do explorador americano Hamilton Rice - Rémiton Raice Cordeiro - como pronunciava na hora da chamada a nossa professora, irmã Consolata.

Os dois foram meus colegas no Ginásio de Aparecida. Taí o Hamilton, atualmente um economista respeitado, que não me deixa mentir. Do Franklin - o ‘Bolo’ - não tenho notícias. Só de um terceiro irmão, o Cordeirinho, já falecido, que escapou de se chamar George Washington ou Abraham Lincoln. As duas irmãs – Dó e Dinha – hoje seriam Hillary Diane e Condoleezza Rice, mas na época foram registradas prosaicamente como Silvia Helena e Silena, em homenagem à mãe, dona Helena, uma senhora meiga, de semblante tristonho.

Naquela sexta-feira, 13 de abril, além da morte de Roosevelt, os jornais noticiavam o avanço do exército soviético rumo a Berlim, que só seria tomada no dia 22 de abril, provocando o suicídio de Hitler uma semana depois. No dia 7 de maio de 1945 o governo alemão se renderia, colocando ponto final numa guerra estúpida que durou quase seis anos e matou mais de 70 milhões de pessoas. Mas naquele fatídico dia 13 quem imaginava que os acontecimentos seriam tão rápidos e que causariam, dez anos depois, a alegria de um menino amazonense com a meia toda furada? 

A meia furada

Se os navios trouxessem o trigo, se as padarias de Manaus produzissem pão, se já houvesse um sistema de delivery pra entregar broas, se não tivesse chovido, se o guarda-chuva do Silvio Cordeiro não escangalhasse, se ele não tivesse contornado a poça de lama na Bandeira Branca e entrado na taberna do Jaime Mão-de-Gancho, se os russos tivessem tomado Berlim no dia 12 de abril, se Hitler tivesse antecipado seu suicídio – qualquer uma dessas condições seria suficiente para mudar o destino de uma família amazonense, na festa de natal realizada na década seguinte. 

Foi assim. Na tardinha do dia 24 de dezembro de 1955, a Paróquia de Aparecida organizou o natal dos pobres. Os padres redentoristas armaram um palanque na quadra do Colégio e montaram uma árvore de natal iluminada, com um número limitado de brinquedos, que eram poucos para tantas crianças. O critério para distribuí-los foi promover jogos, brincadeiras e competições. O vencedor escolhia o brinquedo.

Os padres chamaram para mestre de cerimônias o jovem Nilton Lins – o mesmo que tempos depois criaria uma Universidade com seu nome. No meio da festa, ele anunciou pelo microfone uma disputa, mas só podiam participar meninos que estivessem usando naquele momento uma meia furada. Era o meu caso. Era o caso do ‘Bolo’. Ambos subimos ao palanque.

Nilton Lins estava penteado com toneladas de gumex, um pozinho que se comprava nas farmácias e se misturava com água, deixando o cabelo duro como plástico. Parecia cerol. Perguntou os nossos nomes e anunciou, então, com voz de locutor de quermesse de subúrbio, “o grande duelo entre Franklin Delano Roosevelt Cordeiro e José Ribamar Bessa Freire”. Era uma covardia. Como é que um José Ribamar - nome de porteiro de motel - iria enfrentar um presidente americano, um “winner” nato? 

Enfrentei. As regras do jogo eram as seguintes. Depois do apito dado por Nilton Lins, cada um dos dois contendores desamarrava o sapato, tirava a meia furada, exibia o buraco para o público, calçava a meia e o sapato. Quem terminasse primeiro, ganhava, e podia escolher um presente na árvore de natal. Minhas irmãs estavam na torcida organizada. “Vai lá, Babá” – gritavam Tequinha e Gina na primeira fila. Eu fui mesmo, com muita sede ao pote. 

Vai lá, Babá
O meu sapato tinha garantia de vida eterna dada por Domingos Russo, um italiano solidário, sapateiro dos pobres, que havia migrado para o Amazonas e ressuscitava sapatos velhos, colocando neles uma sola inteira de pneu. Nós andávamos sobre quatro rodas com Pirelli e Goodyear. Quando o pé crescia, a gente ia dobrando os dedos até que não dava mais e um irmão menor herdava o sapato. Já minha meia, de vida mais efêmera, só tinha praticamente o cano, era fácil exibir os furos. Terminei a operação em alguns segundos, enquanto o ‘Bolo’ ainda procurava exibir o buraquinho da sua meia.

Fui proclamado vencedor. Retirei da árvore uma bola colorida, vistosa, o primeiro presente de natal por mim conquistado. Mas aquela bola poderia ter sido do ‘Bolo’ se os russos tivessem antecipado a invasão de Berlim, porque nesse caso, em vez de Franklin Roosevelt, eu teria de enfrentar Vladimir Ilytch Ulianov Cordeiro ou Joseph Stalin Zinoviev Cordeiro, nomes certamente mais talhados para vencer um Ribamar. Se a guerra tivesse sido vencida pelos alemães, o duelo seria com Heil Hitler Cordeiro.

Mas nada acontece por acaso e, como reza uma lei da dialética, tudo está articulado, todo o universo é uma imensa rede de interações, não existe nada de forma absolutamente independente, quando uma borboleta bate asas sobre o Mar da China pode provocar um furacão em Los Angeles, da mesma forma que a morte de um presidente dos Estados Unidos pode contribuir, dez anos depois, para que uma criança amazonense ganhe seu presente de natal. Assim foi. 

Ouvi a história do nome do ‘Bolo’ durante uma partida de dominó na taberna da dona Bati, esquina do Beco da Bosta com a Xavier de Mendonça, contada pelo próprio Silvio Cordeiro ao meu progenitor João Barbosa, seu colega de copo e de cruz. Ambos estavam completamente chirrados. Meio século depois, confesso que minha memória pode ter enfeitado um pouco, corrigindo ou arredondando alguns pormenores, omitindo outros e até preenchendo por conta própria algumas lacunas. “Às vezes – nos assegura Bráulio Tavares – lembramos com nitidez absoluta coisas que nunca aconteceram a não ser em nossa imaginação”.

Com todas essas ressalvas, afirmo que o referido é verdade e dou fé. Tudo isso é tão verdadeiro quanto os dois aniversários: amanhã, 20 de dezembro, da Regina Nakamura, minha mana querida a quem tudo devo, e ontem, 18 de dezembro, do meu quase cunhado Rubem Rola, filho da Marina, vendedor de broas, que completou 63 anos. Aos dois, os parabéns da coluna. Aos leitores e leitoras, se a gente não se cruzar antes, desejo um feliz natal. 

P.S. – Detalhes sobre Rubem Rola em http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=212

*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo, natural de Manaus e assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blogTaqui Pra Ti e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.

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